“Trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto.” DELEUZE & GUATTARI, O Que É A Filosofia, 1991
“Sr. cidadão, eu quero saber: com quantos quilos de medo se faz uma tradição?”
TOM ZÉ, Sr. Cidadão
No Brasil contemporâneo, o conservadorismo manifesta-se como epidemia, como uma patologia de massas, algo que evoca o conceito crucial de Wilhelm Reich de uma “peste emocional”. Há algo de pestífero na maneira como esta ideologia tóxica da extrema-direita – aquela que se diz “liberal na economia e conservadora nos costumes” – disseminou-se, colonizando multidões e causando estragos devastadores. Em sua essência, o conservadorismo produz oprimidos que são cúmplices de seus opressores e tem tudo a ver com a produção de uma psicologia de massas propícia ao fascismo.
Na melhor das hipóteses, o conservadorismo produz estagnação, mas o que estamos testemunhando é muito pior: estamos sendo soterrados por uma avalanche de retrocessos que parecem instaurar uma “Nova Idade Média”, como cantou Cazuza. As recentes incursões na arena do populismo eleitoreiro de Micheque Bolsonaro e da ministra-pastora Damares Alves indicam que o Brasil tornou-se o palco para uma mega distopia totalitária-teocrática – a nova temporada de The Handmaid’s Tale será filmada aqui!
O racismo religioso, a intolerância com as culturas de matriz africana e as políticas públicas que arrasam direitos de indígenas e quilombolas andam de mãos dadas no criminoso conservadorismo bolsocrático. Somos tentados a dizer que o gado de manobra que o bolsonarismo está tangendo para longe do pacto civilizatório mínimo que se expressa no tão estuprado e achincalhado Estado Democrático de Direito vem aderindo à conservação de tudo que há de mais sórdido e atrasado no planeta: o racismo da supremacia branca; a dominação masculina heteropatriarcal; a violência policial desenfreada e o encarceramento em massa para punir os pobres; a espoliação desapiedada da força de trabalho uberizada e precarizada; a agressão contra os dissidentes da norma de gênero; a desregulação econômica que favorece os lucros exorbitantes de corporações transnacionais e do capital financeiro etc.
“Vivemos um momento contrarrevolucionário”, escreve uma das pessoas que melhor pensa neste planeta, Paul Beatriz Preciado: “estamos imersos em uma reforma heteropatriarcal, colonial e neonacionalista que visa desfazer as conquistas de longos processos de emancipação operária, sexual e anticolonial dos últimos séculos…. A obscura era do pixel poderia ser inclusive a última, se não conseguirmos inventar novas formas de equilíbrio entre os mundos do carbono e do silício.” (La izquierda bajo la piel, prólogo a Esferas da Insurreição de Suely Rolnik, p. 11)
Nos escritos de Suely Rolnik, temos acesso a uma relevante análise teórica e proposta prática sobre esta patologia social que é o conservadorismo, doença coletiva que conduz sociedades à estagnação e à rigidez. Conservadorismo que cafetina nossas vidas, esmagando nelas a potência de polinização e a pulsão de primavera, asfixiando a emergência do novo para preservar injustiças estruturais herdadas dos horrores pretéritos. Conservadorismo que tem tudo a ver com o rigor mortis dos cadáveres, com a fobia da transformação que tranca os conservadores no medo reacionário de uma sociedade diferente que pode advir. Não é à toa que o conservadorismo com tanta frequência pode ser descrito com o sufixo fobia: eles morrem de medo fóbico de tudo aquilo que, transgredindo as formas enrijecidas, pode liberar nossas vidas para que inventem outras formas de conviver.
No debate sócio-político atual no Brasil, quando somos constantemente acossados pela noção de polarização, é preciso compreender bem que não se trata da oposição entre dois extremismos – o bolsonarismo e o lulismo. O bolsonarismo sim é extremista e integra um fenômeno internacional de neo-fascismo ultra-capitalista que tomou o poder (e o conserva) com Orbán na Hungria, Duterte nas Filipinas, e que logrou também estar na Casa Branca com Trump.
O lulismo não é um extremismo, como prova a estratégia conciliadora, de frente ampla, que gerou esta bizarra chapa para a disputa presidencial que coliga Lula e Alckmin e que vem repleta de garantias ao mercado e aos patronatos (como a Fiesp) de que o Brasil em um novo governo lulista não será transformado em um Cuba nem numa Venezuela.
A polarização, se existe, como de fato parece ser o caso, envolve outros pólos que, pensando junto com Suely, vou chamar de pólo conservador (à direita, enraizada em afetos reativos) e de pólo transformador (à esquerda, apostando em afetos ativos) – que atuam em interação dialética e produzindo uma síntese móvel e dinâmica. Estes pólos estão atuando não apenas na sociedade mas no “interior” de subjetividades que também podem oscilar entre ambos:
“Gera-se uma tensão entre, de um lado, o movimento que pressiona a subjetividade na direção da conservação das formas em que a vida se encontra materializada e, de outro, o movimento que a pressiona na direção da conservação da vida em sua potência de germinação, a qual só se completa quando tais embriões tomam consistência em outras formas da subjetividade e do mundo, colocando em risco suas formas vigentes. Tensionada entre esses dois movimentos, a subjetividade converte-se num grande ponto de interrogação, para o qual terá que encontrar uma resposta. Podemos chamar esse ponto de interrogação tensionante de ‘inconsciente pulsional’.” (ROLNIK, n-1, p. 56)
A obra de Rolnik, que foi colaboradora de Guattari, coloca para tremular a bandeira de uma união entre as esferas da revolução macropolítica e insurreição micropolítica – ambas dependentes de uma “descolonização do inconsciente” que a autora pensa inspirando-se na obra de João Perci Schiavon.
Na revista Amazonas, Nazaret Castro Buzon pontuou: “Rolnik afirma que o abuso da vida é inerente ao regime do inconsciente colonial-capitalístico em sua versão neoliberal. A expropriação da força vital, não somente e forma de força de trabalho na fábrica em si, como analisou Marx, mas também da vida na sua potência transformadora e criadora: não só da vida humana, nem da vida de uma região, mas do ecossistema do planeta como um todo. A distinção entre macro e micropolítica, retomada de Deleuze e Guattari – e das noções foucaultianas de microfísica do poder e de biopoder – nos permite entender que nenhum processo revolucionário pode mudar a realidade se, por sua vez, não são produzidas transformações no nível das subjetividades.”
Algumas das grandes questões a serem enfrentadas no debate público dizem respeito ao valor daquilo que os conservadores defendem que é digno de conservação: vale realmente a pena manter ativo e operante aquilo que nos pregam que merece ser conservado? E a grande resposta que não posso me furtar de formular é esta: o que a maioria dos conservadores defende é a manutenção de estruturas de opressão que nos foram legadas por gerações anteriores, na forma de privilégios injustos ou de capital concentrado em poucas mãos, e isto certamente não é digno de preservação.
Nos tempos em que estava vigente a teoria geocêntrica abraçada por Ptolomeu e pela santa Igreja, em que a Terra era concebida como centro do cosmos e criação de um Deus-Pai que nos fez à sua imagem e semelhança, os conservadores defendiam com ferocidade a conservação desta sacrossanta verdade absoluta inclusive apoiando que Giordano Bruno queimasse na fogueira e que Galileu Galilei fosse submetido ao tribunal da Inquisição.
Nos tempos em que o comércio de pessoas escravizadas funcionava de vento em popa e os impérios europeus lucravam com o escravismo, os conservadores cristãos defendiam a continuidade desta santíssima instituição devotada ao deus lucro e que cometeu atrocidades perversas contra milhões de seres humanos por mais de 3 séculos.
Nos tempos em que as mulheres estavam impedidas de ir às urnas, os conservadores faziam de tudo para silenciar, prender, torturar ou matar as sufragistas para conservar um sistema de voto restrito aos machos com grana, que queriam deter o privilégio de votar apenas em outros machos com grana.
Todos os avanços rumo a uma sociedade da polifonia e não da monocultura, da diversidade e não da homogeneidade, foram avanços que se deram na contracorrente do conservadorismo estagnador. O conservadorismo, apesar de sua máscara de virtude, a despeito de sua pose de estar salvaguardando valores sagrados e instituições sacrossantas, na prática atua no palco histórico como o grande sufocador da transformação, o grande asfixiador da emergência do novo. Quando a ideologia conservadora se massifica, o que temos é uma massa de zumbis desumanizados que se locupletam com o consumo submisso do mesmo.
Hoje, o conservadorismo quer conservar aquela mentalidade de shopping center e hipermercado que leva os cidadãos despolitizados a pautarem suas existências pelo consumo de mercadorias, inclusive reduzindo o âmbito do trabalho a uma busca dos meios-para-comprar. O trabalho cessa de ser a função social, útil à comunidade, que o sujeito desenvolve em prol do coletivo e que lhe oferece também no domínio simbólico um sentido para a vida, e trabalhar passa a ser algo que se faz pelo dinheiro, e este se quer para comprar mercadoria que “são usadas como perfumes para disfarçar o odor infecto de uma vida estagnada”, como escreve Suely Rolnik (p. 74).
O que caracteriza o conservadorismo e a subjetividade por ele conformada é um “encastelamento no instítuído”, um conformismo que é súdito do que já é e trava o advento do que pode ser – como escreve Suely Rolnik em seu artigo O Abuso da Vida presente no livro Arte, Censura e Liberdade da Cobogó: o sujeito submisso à ordem capitalista cafetina e colonial, e que deseja conservá-la, “desconhecendo o processo contínuo de mutação próprio à dinâmica vital”, acaba por “viver a pressão dos embriões de mundo como ameaça de desagregação” e “nessas condições, para recobrar um equilíbrio, o desejo agarra-se às formas estabelecidas, as quais busca conservar a qualquer custo”:
“Quanto maior a desestabilização, mais veementemente a subjetividade encastela-se no instituído e o defende com unhas e dentes, podendo chegar a altos níveis de violência para garantir sua permanência – inclusive a eliminação concreta de qualquer outro que não seja seu espelho, cuja existência tenha por efeito ab alar a fé na absoluta universalidade de seu mundo. (…) O desejo tende a agarrar-se ao statu quo… e as formações do insconciente no campo social que disso decorrem são responsáveis pelo surgimento de hordas de zumbis que têm povoado o planeta cada vez mais assustadoramente.” (ROLNIK, p. 207)
No Brasil, a manada de Bolsozumbis age em prol da conservação do status quo marcado pelo racismo estrutural, pela dominação masculina, pela heterossexualidade compulsória, pelo ecocídio e pelo etnocídio. A manada de manobra do Bolsofascismo adere ao Grande Líder que promete a conservação dos privilégios injustos de uma elite herdeira do escravismo e que clama para que o homem branco rico continue mandando enquanto as mulheres permanecem submissas – belas, recatadas e do lar. A LGTBQIA+ fobia manifesta o pavor destas subjetividades enrijecidas e encouraçadas diante da emergência dos sujeitos pós-binários e das formas queer de amar, baseadas em outras estruturas de pertença e outras afetividades para além do papai-mamãe-filhinhos da família tradicional brasileira.
Vomitando memes no Zapistão, pregando fundamentalismos nos templos do neopentecostalismo cristofascista, usando e abusando do pânico moral produzido por mamadeiras de piroca e kits gay, e mobilizando influenciadores digitais que enriquecem com as ferramentas do capitalismo à maneira do Vale do Silício, o conservadorismo direitoso produz no Brasil fenômenos espantosos como a banalização e impunização do genocídio pandêmico e a bizarra postulação de uma candidatura à re-eleição daquele que foi certamente um dos governos mais criminosos e desastrosos de toda a história da República. É esta hecatombe que vocês querem conservar, ó zumbis do Bolsofascismo?!?
Eduardo Carli de Moraes
a ser continuado…
Publicado em: 13/08/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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gilberto galvão
Comentou em 21/03/23